A Alergia ao Látex é um problema multidisciplinar em crescendo, com características de iatrogenia e de índole profissional que a todos os profissionais de saúde importa conhecer. O seu aparecimento enquadra-se perfeitamente nas alterações do meio ambiente hospitalar ocorridas nos últimos 20 anos. É pois um exemplo de como o Ambiente e a Ecologia, seja ela hospitalar ou comunitária, profissional ou doméstica, são também áreas da Imunoalergologia, para uma melhor compreensão da doença alérgica.
Os produtos de látex têm actualmente um lugar fundamental na prestação diária de cuidados de saúde. Para além das luvas existem múltiplos outros produtos que contêm látex, utilizados quer na prestação de cuidados de saúde quer em uso corrente (Tabela I). O próprio ar ambiente de blocos operatórios e de enfermarias contém partículas de látex em aerossol que podem ser responsáveis por manifestações respiratórias.
USO EM CUIDADOS DE SAÚDE
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USO CORRENTE
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Dedeiras
Luvas Sondas de entubação naso-gástrica Algálias "Penrose" Cânulas Faríngeas Máscaras de Ventilação Drenos Garrotes Adesivos Balões de manometria Borrachas dos sistemas de soros Ligaduras elásticas |
Tecidos elásticos
Luvas de uso doméstico Preservativos Colas Têxteis Colas de envelopes Bolas Brinquedos de borracha Balões Toucas de banho Óculos de natação e tubos de respiração Câmaras de ar Chupetas, Tetinas Fraldas |
O primeiro relato publicado de sintomatologia alérgica ao látex data de 1927 na Alemanha, tendo ulteriormente sido relatados mais dois casos alemães. No entanto, é só a partir da descrição em 1979 no British Journal of Dermatology de um caso de urticária de contacto nas mãos que a alergia ao látex passa a ser mais conhecida.
Considera-se a existência de grupos de risco, na sua maioria indivíduos com exposição intensa às proteínas do látex, já que, tal como noutras sensibilizações a aeroalergénios, é a quantidade do alergénio a que se está exposto, associada à via de exposição e à predisposição individual que influencia a sensibilização e o aparecimento de sintomatologia. São exemplos de grupos de risco:
CLÍNICA: As manifestações de reacções adversas aos produtos que contêm látex são muito variáveis e influenciadas pelo tipo de hipersensibilidade envolvida, pela via de exposição, pela quantidade da exposição e por alterações individuais na reactividade do órgão-alvo. Podem dividir-se em não imunológicas (irritativas) e imunológicas, as quais por sua vez podem ser retardadas (tipo IV) ou imediatas -IgE mediadas (tipo I ). Raramente, podem coexistir no mesmo doente manifestações clínicas de hipersensibilidade retardada e imediata.
São as mais frequentes e desenvolvem-se gradualmente ao longo de dias ou meses de contacto repetido. Manifestam-se por eritema, fissuração, xerose ou descamação, e raramente por vesículas ou bolhas. Mais frequentemente os agentes incriminados são os solventes e/ou detergentes que se aplicam nas mãos antes de calçar as luvas e cuja acção agressiva é potenciada pelo ambiente de oclusão que a luva provoca.
Resultam de um mecanismo de hipersensibilidade retardada envolvendo, em primeiro lugar, a captação dos antigénios pelas células de Langerhans da pele. Estas células vão migrar até aos gânglios regionais e aí efectuar a apresentação desses antigénios a linfócitos locais. Após a apresentação, os linfócitos sofrem estimulação e expansão clonal distribuindo-se ulteriormente por todo o tegumento. A reexposição ao agente sensibilizante induz uma reacção inflamatória local, que surge 48 a 72 horas após a exposição e que é caracterizada pela libertação de múltiplas citocinas pró-inflamatórias e pela acumulação de linfócitos e eosinófilos. As reacções clínicas são de tipo eczematoso e frequentemente localizam-se no terço inferior do antebraço, mãos e dedos já que estas são as zonas que contactam com as luvas ou manipulam os produtos de borracha. No entanto podem surgir noutras localizações: o couro cabeludo -toucas de banho-, a face -óculos de natação, máscaras-, tronco ou membros -vestuário de tipo elástico, calçado- ou também na pele da região genital no caso dos preservativos. Estão ainda descritos casos de dermatite de contacto ao látex aerosolizado. Actualmente é aceite que na grande maioria destes casos estarão implicadas não as proteínas do látex mas alguns dos aceleradores do processo da vulcanização (Thiurams, Carbamatos), incorporados durante o processo industrial de fabrico mas existem alguns casos descritos em que são as próprias proteínas do látex que são as responsáveis por este tipo de reacções, com negatividade de resposta em relação aos aditivos da borracha.
Resultam de um mecanismo IgE-mediado, dirigido contra moléculas protéicas contidas no látex e semelhante ao de reacções alérgicas a outros alergénios. A pele é o órgão mais frequentemente afectado, muito provavelmente por causa da frequente e prolongada exposição aos alergénios do látex. Segue-se em ordem de frequência o atingimento ocular, nasal ou brônquico. Menos frequentemente podemos também encontrar quadros de tipo anafiláctico e, mais raramente, sintomas isolados do tracto gastrointestinal. Alguns autores defendem a progressão de queixas exclusivamente cutâneas para queixas respiratórias e anafilácticas, se o contacto não for interrompido.
Os mais frequentes são a urticária e o angioedema de contacto que foram os sintomas referidos nas primeiras descrições da alergia ao látex. Inicialmente as manifestações podem-se limitar a prurido e/ou eritema ligeiros, localizados apenas à área do contacto. Ulteriormente, pode desenvolver-se urticária ou edema que se podem manter localizados ou ser generalizados (mais frequentemente quando o contacto se dá com as mucosas). Os sintomas usualmente iniciam-se cerca de 15 a 30 minutos após o início do contacto e duram uma a duas horas após a cessação do contacto.
O envolvimento das mucosas tem sintomatologia semelhante mas maior probabilidade de se associar a generalização das queixas e a anafilaxia. Em muitos indivíduos não expostos profissionalmente é frequente os primeiros sintomas só aparecerem após contacto com mucosas. O edema e prurido dos lábios no contacto com balões de borracha é tão frequente que é quase patognomónico desta situação. Dado existir uma reactividade cruzada muito significativa entre o látex e múltiplos alimentos, particularmente frutos (Tabela II), a presença de sintomas da mucosa oral, labial ou da pele peri-labial após ingestão alimentar é frequente nos doentes com alergia ao látex.
Alimentos com Associação ForteBanana, Pêra Abacate, Castanha, Manga, Kiwi, Pêssego Alimentos com Associação Moderada Maçã, Batata, Tomate, Melão, Papaia, Ananás, Cenoura, Aipo Alimentos com Associação Fraca mas já descrita Pêra, Nabo, Pepino, Cereja, Morango, Figo, Uvas, Maracujá, Centeio, Trigo, Avelã, Noz, Amendoim, Soja, Espinafre, Limão, Ameixa, Ervilhas, Laranja, Grão |
Quando o contacto se dá com a mucosa conjuntival pode surgir prurido ocular, hiperémia conjuntival, lacrimejo ou edema palpebral. Os sintomas nasais iniciam-se habitualmente por prurido nasal e crises esternutatórias, seguindo-se, se o contacto se prolongar, o aparecimento de rinorreia aquosa e a obstrução nasal.
Normalmente, só em casos de contacto prolongado ou repetido é que se observa o aparecimento de ardor orofaríngeo, disfonia ou tosse.
Os sintomas podem ser induzidos pelo contacto directo do látex com as mucosas, ou por via aérea, através do látex aerosolizado ou "airborne".
O látex aerosolizado pode causar sintomas brônquicos, variando desde tosse seca ligeira a crises graves de asma. A intensidade das crises pode variar de indivíduo para indivíduo, sendo condicionada pela intensidade da exposição.
Por definição são reacções generalizadas envolvendo dois ou mais sistemas e podem causar a morte se o envolvimento respiratório (asfixia por edema laríngeo ou por broncospasmo grave) ou cardiovascular (hipotensão e choque) forem suficientemente intensos. É causada pela desgranulação mastocitária, estando demonstrada a subida dos níveis de triptase sérica em vários casos de anafilaxia ao látex. Estas reacções graves podem ser precedidas por sintomas ligeiros (e por vezes insuficientemente valorizados) como prurido palmar ou crises esternutatórias ou aparecer sem qualquer sintomatologia prévia. Nalguns casos, a Anafilaxia é logo a primeira manifestação de Alergia ao Látex mas mais frequentemente existem antecedentes de várias reacções menos graves no contacto com produtos de látex, aparentes num questionário mais cuidadoso.
A sua ocorrência é mais provável quando o contacto com o látex se faz através de superfície mucosa, por via endovenosa ou durante uma manipulação cirúrgica. Estima-se que 10% de todas as reacções anafilácticas intraoperatórias sejam devidas ao látex. Diferenciam-se, do ponto de vista clínico, das anafilaxias induzidas pelos anestésicos gerais pela cronologia do seu aparecimento; enquanto estas surgem poucos minutos após a indução anestésica, as causadas pelo látex surgem mais tardiamente, geralmente 15 a 30 minutos após o início da manipulação cirúrgica.
Infelizmente, não há dados epidemiológicos disponíveis que nos permitam prever de uma forma precisa o risco de reacção anafiláctica em contacto futuro com o látex; decorre deste facto a necessidade de se implementar medidas de evicção eficazes em todos os doentes com alergia ao látex, particularmente se tiver já ocorrido qualquer reacção generalizada.
DIAGNÓSTICO: Tal como em outras etiologias alérgicas, é baseado numa história clínica exaustiva e na demonstração "in vivo" e/ou "in vitro" de mecanismos imediatos IgE mediados dirigidos contra proteínas do látex. Nunca é demais salientar que uma boa anamnese pré-operatória pode fornecer a suspeita de alergia ao látex e levar à instituição de medidas preventivas de reacções alérgicas graves no decurso da cirurgia.
Deve prestar-se particular atenção a aspectos que frequentemente, por serem pouco exuberantes, podem passar despercebidos num interrogatório menos cuidado. São eles:
A demonstração de mecanismo IgE mediado é essencial para o diagnóstico e pode ser efectuada in vivo por testes cutâneos ou provas de provocação e in vitro por doseamento de IgE específicas séricas ou outros métodos. Os testes cutâneos que actualmente se executam para o diagnóstico de alergia ao látex são de dois tipos: testes cutâneos em picada (¿prick-tests¿) e testes de contacto ou de uso. A sensibilidade e especificidade destes testes é boa e superior à dos testes laboratoriais mas só deverão ser efectuados por pessoal treinado. As provas de provocação podem ser efectuadas em câmaras de exposição e só em hospitais. O doseamento de IgE específicas no soro está disponível e a sua técnica é semelhante à utilizada para outros alergenos. Podemos efectuar outros testes como a avaliação de activação basofílica por Citometria de Fluxo ou Testes de Estimulação Linfocitária após incubação com proteínas do látex, pretendendo demonstrar-se diferentes aspectos de activação celular. No entanto, estes métodos estão restringidos à investigação.
TERAPÊUTICA: O tratamento de um doente alérgico ao látex baseia-se em: